Histórias de fé, desafios e resistência na vida dos caminhoneiros
Por Franzé de Sousa
O motor roncava alto enquanto o caminhão cortava a longa reta entre o Trevão do Ibó e Salgueiro, em Pernambuco. A BR-116, com seus 4.610 km de extensão, é mais do que uma rodovia: é a espinha dorsal do transporte nacional. Ligando Fortaleza, no Ceará, ao Rio Grande do Sul, ela se transforma em um cenário de sacrifício, perigos e histórias de resiliência para os caminhoneiros que a percorrem diariamente.

Durante nove anos, vivi o cotidiano das rodovias que cortam o Brasil de Norte a Sul e de Leste a Oeste. Um ano desse período foi dedicado ao transporte de frutas para o terminal portuário de Suape, saindo de Petrolina, em Pernambuco, ou de Juazeiro, na Bahia, transportando mangas e uvas destinadas à Europa e aos Estados Unidos. Atravessar o famoso "retão" do Ibó era sempre um teste de nervos. Isolado, sem policiamento efetivo e com a constante ameaça de assaltos, cada quilômetro tornava-se mais longo e angustiante. No silêncio do caminhão, o som dos pneus no asfalto rompia a monotonia, enquanto a solidão dava lugar a reflexões profundas sobre os desafios de quem vive na estrada.
A saudade de casa era outra companheira constante. Estar longe da família, perder momentos importantes como o crescimento e a educação dos filhos, e ainda enfrentar as incertezas da estrada era um peso difícil de carregar. Deixei a profissão em 2010 para retomar os estudos e concluir minha graduação. Já não trabalho mais como motorista profissional, mas o chamado da estrada ainda aperta o peito. Para produzir essa matéria, voltei à BR-116 com um amigo caminhoneiro para revisitar os desafios atuais e compará-los aos que enfrentei nos anos 2000. Reviver essa rotina não apenas reacendeu emoções, mas também confirmou que a vida de caminhoneiro está longe de ser a visão romântica que muitos imaginam.
O ronco do motor na BR-116 é mais que som; é um grito de resistência dos caminhoneiros, que vivem na estrada o peso literal e metafórico de mover o Brasil. De norte a sul, a rodovia narra, em seus quilômetros, a rotina árdua de quem cruza o país carregando sonhos e mercadorias.
No trecho entre o Trevão do Ibó e Salgueiro, a paisagem semiárida impõe um desafio duplo: a solidão do percurso e o calor implacável. Para os caminhoneiros, a BR-116 não é apenas uma via, mas um campo de batalha diário, onde enfrentam a exaustão, a precariedade das paradas e, muitas vezes, o medo constante de assaltos.
João Batista (Recife/PE), com 32 anos de estrada, descreve a BR-116 como uma "mãe severa". "Ela dá o sustento, mas cobra caro. Aqui, não tem luxo. O conforto é o banco do caminhão, e o companheiro mais fiel é o rádio. Tem dias que a saudade pesa mais que a carga."
O percurso, muitas vezes repleto de caminhões-tanque, baús e cegonhas, reflete uma rede de abastecimento essencial para a economia. Mas, por trás do transporte de alimentos, combustíveis e bens de consumo, estão pessoas que convivem com a incerteza da próxima refeição ou do próximo descanso.
No entardecer do Sertão, quando o céu ganha tons de laranja e púrpura, os caminhoneiros que passam por Salgueiro carregam consigo mais que mercadorias. Cada um deles é um depositário de histórias de superação e fragilidades humanas, que se misturam ao asfalto quente e ao ronco contínuo do motor.
A Solidão e os Desafios da Estrada
Ser caminhoneiro é mais do que transportar mercadorias; é carregar o peso do descaso das autoridades, das promessas vazias das empresas e do desprezo de uma sociedade que, muitas vezes, esquece que tudo o que consome depende desses profissionais.
O peso das cargas que transportam não é maior do que o das injustiças que carregam, em um sistema onde as promessas de melhorias na infraestrutura e nas condições de trabalho se acumulam sem solução.
Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), o Brasil conta com mais de 2 milhões de caminhoneiros, e cerca de 70% das rodovias pavimentadas estão em estado regular, ruim ou péssimo. Não surpreende, então, que acidentes envolvendo caminhões representem quase 30% das mortes nas rodovias federais, segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT).
A precariedade das condições de trabalho também afeta a saúde desses profissionais. As consequências vão além do asfalto: estudos relacionados à saúde mental de motoristas de caminhão, incluindo os fatores que afetam seu bem-estar, apontam altos índices de distúrbios como ansiedade e estresse devido às condições de trabalho, jornadas extenuantes e o isolamento social durante as viagens . Além disso, doenças cardiovasculares e obesidade são comuns, agravadas pela alimentação inadequada.
Carlos Eduardo (Campinas/SP), caminhoneiro há mais de 20 anos, ilustra bem essa realidade. "Cada luz que aparece no retrovisor é uma incerteza. A gente nunca sabe se é só mais um colega ou um perigo na estrada", conta ele, referindo-se à insegurança constante nas rodovias do país. As palavra de Carlos traduz a insegurança cotidiana em um simples relato. Sua visão no retrovisor não é apenas física, mas simbólica: ela reflete o medo, a incerteza e a solidão que acompanham os caminhoneiros.

O Preço do Descaso
Os desafios não se limitam ao asfalto. Após chegar ao destino, as longas esperas para carregar ou descarregar mercadorias, muitas vezes sem estrutura ou remuneração extra, são frequentes. Locais para descanso, alimentação ou higiene básica quase inexistem. Muitos motoristas improvisam cozinhas nos caminhões e adaptam os veículos para tornar as noites menos desconfortáveis.
Júlio César, caminhoneiro de Maceió, carrega não apenas mercadorias, mas também as marcas físicas e emocionais de uma vida na estrada. "É uma vida dura. Você não tem tempo para cuidar da saúde, vê pouco a família e ainda é tratado como bicho pelas empresas. Cachorro tem tratamento melhor." As suas palavras ecoam o sentimento de desvalorização compartilhado por milhares. Com hipertensão e dores crônicas nas costas, ele ilustra como a negligência sistêmica impacta diretamente a saúde dos motoristas.
A insegurança nas rodovias é um capítulo à parte. Nos últimos cinco anos, a Polícia Rodoviária Federal registrou mais de 20 mil assaltos em rodovias federais, muitos deles em trechos isolados como o "retão" do Ibó.
Heróis Invisíveis e o Peso da Ausência
Os caminhoneiros movimentam cerca de 60% das mercadorias no Brasil, segundo a CNT, mas permanecem invisíveis. Eles atravessam dias e noites para garantir que prateleiras estejam cheias, fábricas operando e exportações fluindo. Ainda assim, enfrentam abandono histórico.
A vida na estrada sempre foi uma constante em minha história. Meu pai, caminhoneiro por anos, foi o meu primeiro professor. Ele me ensinou mais do que as rotas e as manobras necessárias para atravessar o país — me ensinou a resistência, o peso silencioso das horas passadas longe de casa e a solidão que habita os longos dias de estrada. Sempre ouvi suas histórias, suas desilusões, mas também sua coragem. Ele falava pouco, mas quando o fazia, suas palavras pesavam, como se carregassem o fardo de décadas de estrada.
Decidi seguir sua tradição. Subi no caminhão e percorri as mesmas rotas que ele percorreu, tentando entender a vida que ele viveu, o que o fez seguir em frente, noite após noite, com o ronco do motor como único companheiro. Mas nessa última viagem que fiz com meu parceiro Rildson, percebi que pouco mudou. O abandono ainda está lá, nas estradas maltratadas, nas paradas sem estrutura, nos postos sem a mínima dignidade. E, apesar de tudo, o silêncio da estrada continua sendo o mesmo, um grito abafado que poucos ouvem.
É difícil colocar em palavras o que senti. Em cada quilômetro percorrido, em cada curva da estrada, o peso do que meu pai viveu ainda estava presente. Senti o cheiro do asfalto, o cansaço nas costas e na alma. Mas também senti uma força profunda, como se, apesar de tudo, a estrada fosse a prova de que a vida segue, e que há algo de inquebrantável naqueles que, como ele, carregam o país nas costas.
As promessas não cumpridas, o desgaste, a falta de apoio... tudo estava ali, estampado nas marcas da estrada, nos rostos dos caminhoneiros que ainda continuam a trilhar esse caminho incansável. É como se o tempo não tivesse passado, como se tudo o que meu pai viveu fosse uma repetição, uma ciclicidade de dor e resistência.
A saudade me apertou. Mas também me deu clareza. Entendo muito bem o que ele sentia. Sei que, mesmo nas noites mais longas e nas jornadas mais solitárias, havia algo que o fazia seguir. E talvez, no fundo, seja isso o que mantém viva a memória dos caminhoneiros: a estrada, a luta, e, acima de tudo, o amor incondicional pelo que faz.

Propostas para Transformar a Realidade dos Caminhoneiros:
Valorizar os caminhoneiros é não apenas reconhecer sua importância, mas agir para assegurar que seu trabalho seja realizado com dignidade e segurança. Essas ações refletem um compromisso com o futuro do país, que depende diretamente desse setor para manter a economia em movimento.
Os caminhoneiros são os pilares que conectam o Brasil, levando o abastecimento necessário para todas as regiões e garantindo a movimentação da economia. No entanto, sem o devido apoio e investimento, esses trabalhadores enfrentam condições de trabalho exaustivas e perigosas. Em muitos casos, suas jornadas se tornam um teste constante de resistência, com implicações não apenas para suas vidas, mas para toda a sociedade. É necessário urgência na adoção de medidas que possam melhorar a realidade dos profissionais do volante.
As propostas aqui apresentadas são fruto da vivência e das necessidades dos próprios caminhoneiros, que convivem diariamente com os desafios das estradas. Ao garantir a melhoria da infraestrutura, das condições de saúde e trabalho, e da segurança nas rodovias, é possível criar um ambiente mais seguro e digno para esses profissionais essenciais à economia nacional. Ao investir no bem-estar dos caminhoneiros, não só se fortalece o setor de transporte, mas também se protege a vida de quem é responsável por manter o Brasil em movimento.
Propostas para melhorar a infraestrutura, saúde, condições de trabalho e segurança nas estradas.
Infraestrutura
- Melhorar a pavimentação e sinalização das rodovias.
- Construir áreas de descanso equipadas com serviços básicos, como alimentação, higiene e segurança.
- Criar rotas alternativas para evitar congestionamentos e reduzir o desgaste das estradas.
Saúde
- Implementar unidades móveis de saúde para atendimento médico e odontológico nas principais rodovias.
- Estabelecer programas de suporte psicológico para enfrentar problemas como ansiedade e estresse.
Condições de Trabalho
- Reforçar a fiscalização das jornadas de trabalho, garantindo o cumprimento da legislação vigente.
- Criar linhas de crédito acessíveis para a renovação da frota, reduzindo custos e aumentando a segurança.
Segurança
- Aumentar o efetivo policial nas rodovias, especialmente em trechos críticos como o "retão" do Ibó.
- Investir em sistemas de monitoramento por câmeras e tecnologias de rastreamento para prevenir crimes.
Um Caminho de Respeito e Dignidade
Os caminhoneiros não transportam apenas mercadorias; eles conectam o Brasil. Mas, sem apoio e investimento, enfrentam jornadas exaustivas e perigosas, colocando suas vidas e a economia em risco.
Garantir condições dignas é transformar cada quilômetro percorrido em uma estrada de respeito e esperança. Afinal, no fim de cada reta interminável, há um país inteiro que depende do esforço incansável desses profissionais.