Crônica do cotidiano: a coragem em meio ao preconceito

16/05/2024

Por Franzé de Sousa

Nos primeiros anos da década de 70, vivíamos tempos sombrios. A ditadura militar oprimia o Brasil e transformava a vida cotidiana em um exercício constante de cautela e silêncio. Morávamos numa casinha pequena na periferia de Fortaleza, onde as ruas de areia eram um lembrete constante da distância que nos separava dos bairros mais nobres da cidade.

Meu pai, trabalhador incansável, saía para o emprego antes do amanhecer, e a família toda acordava junto. Minha mãe, como tantas outras, se desdobrava para preparar o café da manhã. Entre esses afazeres, eu tinha a tarefa de ir à mercearia comprar o pão. Era um trajeto longo, mas era o meu momento de liberdade, um quilômetro e meio de passos que me levavam e traziam de volta.

Do outro lado da nossa casa, havia uma vacaria onde muitos homens simples, vindos do interior em busca de uma vida melhor, trabalhavam. E foi nessa rotina que conheci uma figura que até hoje me faz refletir: uma travesti negra, magra, de vestidos floridos e saltos altos, que caminhava como se desfilasse numa passarela. Era uma presença vibrante em meio àquele cenário cinzento.

Ela, no entanto, era alvo constante de zombarias. Os homens da vacaria não perdoavam e, sempre que ela passava pela rua, gritavam:

- Lá vem um viado! - Exclamavam, como se aquilo fosse uma bricadeira.

- Atira, atira. - Incentivavam outros.

- Pei, pei, pei - Imitavam tiros de arma de fogo, numa caçada insana e desumana.

A jovem, corajosa, respondia com um sorriso, tentando transformar o veneno em doçura:

- Meu filho, matou tem que comer! Não pode estragar uma carne tão gostosa!

Eu, uma criança, ria dessas "brincadeiras", achando-as parte de uma normalidade que, naquele momento, eu não compreendia. Até que um dia, ao sair atrasado para comprar pão, me deparei com aqueles mesmos gritos. Corri até a porta de casa para ver a cena, mas fui interrompido pela voz firme da minha mãe:

- Olha o respeito. Isso não é brincadeira que se faça com uma pessoa.

Confuso, continuei meu caminho em direção à mercearia. Aquele dia, porém, foi diferente. Ao me aproximar da travesti, pretendendo imitar os insultos que havia ouvido, percebi algo que mudaria minha visão para sempre. Ela estava soluçando, chorando silenciosamente e pronunciando palavras tristes:

- Quando será que eles vão entender que não sou bicho, que sou gente igual a eles?

Aquelas palavras, ditas com lágrimas nos olhos, penetraram profundamente em minha alma. Sentindo uma vergonha esmagadora, abaixei a cabeça e voltei para casa com o coração pesado. Quando cheguei, minha mãe, com sabedoria, perguntou pelo pão.

- Não tinha. – Respondi com a voz trêmula.

Ela, como se entendesse tudo, beijou minha cabeça e disse:

- A gente tem que ter cuidado com o que fala, as palavras têm força e machucam.

A partir daquele dia, aprendi uma lição valiosa: o respeito é fundamental. Todas as pessoas, independentemente de sua aparência, escolhas ou identidade, merecem ser tratadas com dignidade e humanidade.

Ainda carrego em mim os vestígios de preconceitos enraizados numa sociedade machista e discriminatória. Contudo, o exemplo daquela travesti, o companheirismo e a orientação de pessoas que encontrei ao longo da vida têm ajudado a reeducar meu comportamento. Não sou diferente de muitos da minha geração, mas não economizo esforços para ser uma pessoa melhor, para não reproduzi e perpetuar a crueldade que um dia presenciei.

Esse relato é para lembrar de que todos precisamos estar em um contínuo processo de aprendizado. Combater o preconceito e a discriminação não é apenas uma questão de justiça, mas de humanidade. Cada um de nós pode fazer a diferença ao reconhecer e respeitar a dignidade de cada pessoa. Essa é a verdadeira essência do ser humano.

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